sexta-feira, dezembro 17

Mariposa


Ao fim de um relacionamento, além daquela certa confusão e falta de rumo, bate uma sensação com a qual boa parte de quem ler as próximas linhas vai se identificar: parece que, depois que você termina, ninguém mais sequer olha para você.

Tu tá lá, namorando, tranqüilo, bonitão, e não para de aparecer mulher caindo em cima. Mas é só terminar, meu camarada, que garota nenhuma vai se interessar por você. Dizem que é coisa de hormônio, mas eu prefiro acreditar que mulher tem um ótimo faro para miséria.

Se a teoria já se aplica à pobreza material, ao sofrimento emocional, então, nem se fala. O mancebo, quando sôfrego, angustiado, deve franzir mais a testa, curvar mais a coluna e, sem dúvidas, emitir alguma essência que nem os mestres perfumeiros da Givenchy conseguem decifrar. E nem querem, pois, ao invés de atrair as fêmeas, esse nosso odor de cão-sem-dona não faz outra coisa que não repeli-las.

Confesso que estou nessa fase. Sinto-me um banco de praça recém-pintado, sozinho, abandonado, sem poder se mexer (quanto drama). O que me resta é esperar, só esperar. Quando passar o cheiro da tinta fresca, alguma bunda deliciosa vai aparecer e sentar no meu colo. Mas, por enquanto, todo mundo passa longe. Quase posso ver a cara feia das meninas quando cruzam comigo. Sentem minha desgraça e evadem.

Dia desses, entrou uma mariposa pela janela do meu quarto. Pensei: mais um ser feminino para farejar minha miséria. Ou seria um sinal? Mas que sinal? Dizem que mariposas trazem azar. Será?

Comecei a procurar. “Mariposa” é como chamam os gays no Paraguai. Será que eu deveria virar veado para parar de sofrer com as mulheres? Não, nem pensar.

A segunda opção, porém, me deu esperanças. Mariposa, em francês: “papillon de nuit”. Em tradução livre, algo como “borboleta da noite”. Olhei para a dona lepidóptera parada em cima do armário e notei que ela não fugiu de mim. Talvez porque eu não mais a visse como um inseto agourento, mas como um bichinho simpático que voa no escuro. E não tivesse mais medo dela.

A maior degradação, companheiro, é o medo. Medo de enfrentar, de caminhar. Medo de seguir. Medo de mudar.

Quem sabe amanhã eu volto a sentir borboletas no estômago por alguém e a miséria volta pro inferno, junto com seu cheiro de enxofre? Era o que bastava para que eu dormisse feliz.

Na noite seguinte, a mariposa voltou. Bateu no ventilador de teto e morreu.

Descanse em paz, querida. Obrigado pela lição.

domingo, agosto 22

Alice

Quero você nua tomando café da manhã sentada no chão do nosso quarto claro sem cortinas e sem vírgulas. E se você sentir frio eu te coloco o casaquinho com capuz. Vamos morar num desses art déco com lustres antigos mas sem interruptores nem interrupções. Pra quando ficar escuro a gente só se ocupar em dormir. Quero você charmosa magra fumando na janela pra fumaça dançar quando tocar a nossa música na vitrola véia.  Te compro umas meias grossas que vão até o joelho pra você se confortar. Vão ser marrons. Quero seu dedão de algodão arrastando na minha canela ressecada. Não quero nem saber de estrelas quero suas séries de TV. Vou ser pequeno feito a sua calcinha e não exigirei nada. Nada. Quando acabar acabou. Ponto final é mais charmoso que vírgula. Quando termina começa outra coisa. Não faz remendos fajutos.

terça-feira, abril 6

No me importa, señor.

Adriana, Alessandra, Aline, Arnaldo...

A lista de chamada era sempre comprida. Cumprida invariavelmente até o final, todo santo dia - e mais ainda nos dias infernais - com uma monotonia maldita que esbarrava nos ouvidos recém-despertos, a declamação em ordem alfabética feita pela "tia" tornava fácil, através da repetição, a tarefa de decorar o nome de todos os coleguinhas da sala, por mais que se realizasse em um horário em que nem todos os sentidos estavam perfeitamente aguçados.

Naquela época, eu associava os nomes a características físicas ou comportamentais que, a meu julgar, diziam tudo sobre a pessoa em questão. Alessandra era a gordinha da lancheira cor-de-rosa que, embora sentasse seu imenso traseiro na primeira fileira, não entendia bulhufas na aula de matemática. Ricardo, sempre o primeiro a chegar à quadra de futsal quando soava o sinal para o recreio, tinha suas inconfundíveis bochechas rosadas sempre salpicadas de gotículas de suor.

Nomes, principalmente no início de nossa vida em sociedade, significam muito. Meu irmão, aos quatro anos de idade, na tentativa de evitar uma desastrosa formação de caráter provocada por um equívoco no momento de escolha das poucas letras que acompanham o sujeito até o fim de seus dias, interpelou assertivamente meu pai, que decidira-se por batizar-me Fábio, protestando: "Como assim? Fábio, não. Fábio é chorão, eu quero Fabiano".

Não creio que a fraterna intervenção tenha sido decisiva na contenção das lágrimas que de meus olhos desabam, embora, para ele, aquilo fizesse o maior sentido do mundo. Talvez houvesse um coleguinha chamado Fábio que chorava sempre que sua mãe o deixava na escola. Quem sabe, um filme da Temperatura Máxima tivesse como protagonista um personagem de mesmo nome que abria o berreiro por motivos bobos. 

Mesmo entre os adultos, quem nunca conheceu uma pessoa de vista e, ao saber seu nome, decepcionou-se completamente? "Pôxa, você não tem cara de Eustáquio". O ponto é que automaticamente associamos nomes a características, qualidades, defeitos. Godofreda não pode ser o nome da deliciosa morena de 22 anos que debruça todo seu charme decotado sobre minha mesa do escritório quando precisa da minha rubrica. De jeito nenhum!

Existe alguma experiência, visão ou impressão que fica guardada em um lugar qualquer de nosso cérebro que é imediata e automaticamente associada a um nome quando o lemos ou ouvimos, provocando sensações boas ou ruins. A boa (ou má) notícia é que essa associação pode ser forjada ou alterada através de alguns meios naturais, e outros não tão ortodoxos.

Um exemplo histórico vem bem a calhar: na China comunista de meados do século XX, o culto à personalidade do "Grande Líder", através de massiva propaganda e repressão, fez com que o nome de Mao fosse adorado pela esmagadora maioria da população daquele país. Algo que, para nós, parecia do mal - menos pela semelhança fonética entre "Mao" e "mau" do que pelos constantes alertas sobre o perigo vermelho em nossas terras -, para eles era motivo de orgulho e veneração.

Por aqui, um fumante de hábitos grosseiros que coçava as partes íntimas em público, o operário e sindicalista cheio de ódio ganhou um sufixo diminutivo, paz e amor. Junto, veio a aprovação. Os ternos Ricardo Almeida e as menções ao time de futebol do coração mudaram completamente a imagem associada a um simples nome de duas sílabas, hoje simpático: Lula.

O perigo das associações automáticas pode ser evitado aplicando-se uma análise racional de propostas, intenções, histórico e caráter de qualquer pessoa ligada a um nome. Afinal, passou-se o tempo em que Luiz era apenas o gordinho carismático lá do fundão, que o professor chamava de “o cara”.

Para finalizar, um exercício: o que lhe vem à cabeça quando você lê o nome “Dora”? Uma babá carinhosa? Uma saudável jogadora de vôlei? A amável cozinheira do refeitório da faculdade? Pois bem, sabe qual era o nome da arma de artilharia nazista mais potente da II Guerra Mundial? Pois é, “Dora” era como nosso querido Adolf chamava seu brinquedinho de destruição.

Mais uma: que tal “Dilma”? Bom, essa eu deixo para você.

quarta-feira, janeiro 27

A inexorável ansiedade do ser

(...) não era um, eram dois. Eram sempre ele e sua robusta ansiedade. A ela, queria matar. E queria não mais ser dois, mas três. Queria ser Fabiano, Xico e Antônio. O Xico, Sá. O Antônio, Prata.

O Xico, pelo escracho inteligente, a safadeza inerente e o portunhol convincente. O Antônio, pela sensível fluidez das idéias mirabolantes e únicas que viravam palavras mirabolantes e únicas em textos redondos.

Enquanto o Xico xarope xingava, Antônio saltitava entre parágrafos. E Fabiano engatinhava ali no meio, escrevendo sem personalidade, cheio de dúvidas entre suas vírgulas. Porque ansiava e sofria, antecipado. (...)


*Parte do texto que escreverei quando for um escritor de sucesso. Não que eu esteja ansioso para sê-lo, mas pra que deixar para amanhã o que se pode fazer hoje?

sábado, janeiro 23

Disneylândia II

Foi o Rubem Fonseca quem começou. Abusou de mitologia, inglês e francês para dizer que as putas pobres do Rio de Janeiro não estavam aptas a entender o wit de seus contratantes. Terminado o conto, fechei o livro e entrei na sala para ver o filme americano. Warren Beatty e Faye Dunaway empunhavam suas Smith-Wesson em sua jornada pelo sul dos EUA. Foram mortos por armas talvez da mesma marca. The End.

Saí do filme, li o short message service no meu Motorola e liguei para minha amiga atriz recifense que conheci em São Paulo e filmava seu programa em Buenos Aires, para um canal infantil americano. Combinamos um carioquíssimo chopp para mais tarde.

Resolvi ver o mar. Na ciclovia, pedalava Antonio Caloni, ator de sucesso, descendente de italianos. No calçadão, caminhava Iran, ex-BBB (programa criado na Holanda) de quase sucesso, descendente de africanos. Na areia, a porrada comia solta. Um bando de brancos, mamelucos, caboclos e mulatos fracassados. E olha que o Haiti não é aqui. No Rio, você não precisa assistir a Avatar e nem de óculos especiais para ver a vida em três dimensões.

Nos auto-falantes berrava uma banda nova-iorquina cujo baterista é brasileiro. Acelerei o carro da montadora japonesa para chegar logo em casa e escrever um texto sobre globalização. Mas lembrei que os Titãs já haviam feito isso em Disneylândia, do álbum Titanomaquia, mais de dez anos atrás.

Talvez, se eu tivesse um relógio suíço, não chegasse tão atrasado.